Suspensão de CNH e passaporte por dívida ativa: é permitido pela lei?

Nos últimos anos, tem se discutido amplamente a prática de suspender a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e o passaporte de devedores inscritos na dívida ativa. Essa medida, adotada como uma forma de pressionar o pagamento de débitos, gera dúvidas sobre sua compatibilidade com os princípios constitucionais e os direitos assegurados aos cidadãos brasileiros. Neste artigo, analisaremos os fundamentos legais, as implicações práticas e os debates judiciais relacionados a essa controvérsia.

O conceito de dívida ativa e o processo de cobrança

A dívida ativa refere-se aos créditos que o Estado tem a receber de pessoas físicas ou jurídicas, resultantes de tributos, taxas ou multas não quitadas no prazo devido. Uma vez inscrita na dívida ativa, a Fazenda Pública pode utilizar instrumentos legais para garantir a recuperação do valor devido, incluindo medidas como penhora de bens, bloqueio de contas e, mais recentemente, a suspensão de documentos como CNH e passaporte.

Essa prática, embora não esteja explicitamente prevista na legislação específica de execução fiscal, tem sido aplicada com base em dispositivos gerais do Código de Processo Civil (CPC). Entretanto, sua legalidade ainda é objeto de controvérsia.

A fundamentação jurídica para a suspensão de CNH e passaporte

A principal base legal utilizada para justificar a suspensão de documentos é o artigo 139, inciso IV, do CPC. Esse dispositivo confere ao juiz poderes para determinar medidas coercitivas necessárias para garantir o cumprimento de decisões judiciais, desde que sejam proporcionais, adequadas e fundamentadas.

Embora o texto do CPC seja amplo, ele não menciona especificamente a possibilidade de suspender a CNH ou o passaporte como formas de cobrança de dívida. Isso faz com que a prática dependa de uma interpretação judicial que considere o caso concreto e os princípios constitucionais aplicáveis.

Princípios constitucionais em debate

A análise da suspensão de documentos exige uma consideração cuidadosa dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal. Entre os princípios em questão, destacam-se:

  • Dignidade da pessoa humana: A Constituição estabelece que o respeito à dignidade é um dos fundamentos do Estado, protegendo os indivíduos contra medidas que possam comprometer sua subsistência ou dignidade.
  • Direito de locomoção: Garantido pelo artigo 5º, inciso XV, o direito de ir e vir pode ser diretamente afetado pela suspensão do passaporte, restringindo viagens internacionais, e, em alguns casos, pela suspensão da CNH.
  • Proporcionalidade e razoabilidade: Esses princípios determinam que qualquer medida coercitiva deve ser adequada ao objetivo pretendido, evitando excessos ou restrições desnecessárias aos direitos do devedor.

Argumentos favoráveis à suspensão

Os defensores da suspensão de CNH e passaporte argumentam que a medida é legítima e eficaz para pressionar o devedor a quitar suas obrigações. Em casos onde outras ferramentas, como a penhora de bens, não produzem resultados, a suspensão de documentos pode ser uma alternativa válida para garantir o cumprimento da dívida.

Além disso, o artigo 139, inciso IV, do CPC, dá ao juiz a liberdade de adotar meios atípicos, desde que atendam aos critérios de necessidade e proporcionalidade. Assim, a medida é vista como uma forma de evitar que devedores utilizem lacunas no sistema para permanecer inadimplentes.

Argumentos contrários à medida

Por outro lado, críticos dessa prática destacam que a suspensão de documentos essenciais pode ser desproporcional e, em alguns casos, inconstitucional. A CNH, por exemplo, é indispensável para muitos profissionais, como motoristas e entregadores, cuja renda depende diretamente da posse desse documento.

A suspensão do passaporte, por sua vez, pode prejudicar viagens essenciais, como compromissos profissionais ou tratamentos médicos no exterior. Além disso, há quem sustente que a medida representa uma coação pessoal incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, que privilegia a execução patrimonial como forma de cobrança de dívidas.

A posição do Superior Tribunal de Justiça

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem analisado casos envolvendo a suspensão de CNH e passaporte de devedores, adotando uma abordagem cautelosa. De modo geral, a Corte admite a possibilidade de aplicação de medidas coercitivas atípicas previstas no CPC, desde que respeitem os princípios de proporcionalidade, adequação e necessidade.

Em decisões recentes, o STJ destacou que a suspensão de documentos deve ser uma medida excepcional, aplicada apenas quando houver evidências de que o devedor possui recursos para quitar a dívida, mas se recusa a fazê-lo de forma deliberada.

Divergências nos tribunais

Apesar do posicionamento do STJ, o tema ainda gera divergências nos tribunais inferiores. Em algumas decisões, juízes consideram que a suspensão de documentos viola direitos fundamentais e não deve ser utilizada como forma de cobrança. Já em outros casos, a medida tem sido validada como legítima, especialmente quando outras alternativas de execução se mostram ineficazes.

Essa falta de uniformidade nas decisões evidencia a necessidade de um posicionamento mais consolidado sobre o tema, que equilibre os interesses do Estado na recuperação de créditos e os direitos dos cidadãos.

Como o devedor pode se defender

Quando um devedor tem sua CNH ou passaporte suspenso, ele pode recorrer ao Poder Judiciário para tentar reverter a decisão. Para isso, é essencial apresentar argumentos que demonstrem o impacto da medida em sua vida, como:

  • A necessidade da CNH para o exercício de sua profissão.
  • O uso do passaporte para compromissos indispensáveis, como viagens a trabalho ou tratamento médico.
  • A desproporcionalidade da medida em relação ao valor da dívida ou à situação econômica do devedor.

Além disso, buscar um acordo com a Fazenda Pública pode ser uma estratégia para evitar medidas coercitivas adicionais.

Impactos da suspensão na vida do devedor

A suspensão de documentos pode causar sérias dificuldades para o devedor, comprometendo tanto sua vida pessoal quanto profissional. No caso da CNH, motoristas profissionais podem perder sua fonte de renda, enquanto a suspensão do passaporte pode inviabilizar viagens importantes.

Além disso, a medida pode gerar estigmatização social e afetar negativamente a reputação do devedor, dificultando sua reintegração financeira e social.

Alternativas menos prejudiciais

Antes de determinar a suspensão de documentos, o Judiciário pode recorrer a outras medidas de cobrança menos prejudiciais, como:

  • Bloqueio de contas bancárias ou salários.
  • Penhora de bens móveis e imóveis.
  • Inscrição do nome do devedor em cadastros de inadimplência.

Essas alternativas são amplamente aceitas e possuem menor impacto sobre os direitos fundamentais do devedor, sendo preferíveis em muitas situações.

Considerações finais

A suspensão de CNH e passaporte por dívida ativa é uma questão controversa que exige cautela e equilíbrio. Embora seja legalmente possível, sua aplicação deve respeitar os limites constitucionais e considerar as circunstâncias de cada caso.

O tema reflete a tensão entre o interesse público na recuperação de créditos e a proteção dos direitos individuais. Por isso, cabe ao Judiciário adotar uma abordagem responsável, avaliando cuidadosamente a proporcionalidade e os impactos das medidas coercitivas.

Para os devedores, é fundamental conhecer seus direitos e buscar assistência jurídica adequada para contestar medidas excessivas ou desproporcionais. Enquanto o debate judicial sobre a legalidade da prática continua, é essencial que todas as partes envolvidas atuem em busca de uma solução que respeite tanto os interesses do Estado quanto a dignidade dos cidadãos.

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Gustavo Saraiva

É empreendedor digital, investidor e cofundador do Doutor Multas, sócio do Âmbito Jurídico e sócio da Evah. É colunista do UOL, JUS, Icarros e escreve para dezenas de portais, revistas e jornais.

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